Este trabalho tem como objetivo apontar as relações
presentes entre o livro O Mal Estar na
Civilização de Sigmund Freud (1930) e o filme Clube da Luta (Fight Club) dirigido por David Fincher (2000). Em
relação ao livro homônimo, escrito por Chuck
Palahniuk (1996), o filme é considerado umas das mais fiéis adaptações do
cinema. Fracasso de bilheteria, a obra foi consolidando-se ao passar dos anos e
hoje é considerada um clássico do cinema pós-moderno.
No Brasil, durante a
temporada em cartaz em um shopping freqüentado pela alta classe paulistana, uma
das salas de exibição do longa foi palco de um episódio significativo. Um jovem
de 24 anos disparou tiros de metralhadora acertando, ao que tudo indica, aleatoriamente,
sete pessoas da platéia.
Neste ano de 2013, em um colégio tradicional de
Goiânia, foi descoberto um Clube da Luta criado por alunos do 2º ano do ensino
médio. O grupo se reunia no banheiro masculino durante os intervalos de aula e,
assim como no filme, os participantes do clube seguiam uma lista de regras. A instituição
privada é bem avaliada pela população local principalmente em relação aos
critérios classificatórios de pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Os pais dos alunos exigiram a demissão de um dos professores do colégio
que, mesmo tendo ciência das freqüentes lutas organizadas pelo grupo, decidiu não
interferir.
O que esses dois incidentes podem nos dizer sobre o
conteúdo do referido produto artístico? O que esta obra, por sua vez, nos diz
sobre a civilização da qual brotam esses tipos de acontecimentos? Considerando
as referências trazidas pela psicanálise, buscaremos analisar as pistas e os
símbolos presentes na narrativa de sons e imagens que o filme constrói para
elucidar a compreensão do “mal estar” apontado na obra de Freud.
Quem
é Tyler Durden?
A principal relação da trama se dá entre o inominado
personagem-narrador vivido por Edward Norton e Tyler Durden (Brad Pitt). No
início, o primeiro homem citado é uma figura comum da classe média americana,
funcionário de uma seguradora de automóveis, dono de um apartamento
compulsivamente mobiliado de acordo com os catálogos, infeliz e com problemas
de insônia. Após conhecer Tyler, sua vida toma um rumo radicalmente oposto ao
que vinha se desenhando. Numa sequência inesperada, ele explode seu
apartamento, passando a morar numa casa em ruínas; abstêm-se da formalidade
pela qual conduzia suas relações burocráticas, assumindo uma conduta
profissional displicente; funda um clube da luta, no qual pessoas se reúnem
secretamente, num átimo de libertação selvagem, utilizando-se de seus instintos
agressivos para se sentirem vivas.
Incrivelmente, a grande surpresa dramatúrgica
reservada ao final do filme está na descoberta de que, ao contrário do que se
supunha, Tyler Durden não passava o tempo todo de uma alucinação. Tanto para os
espectadores quanto para o personagem-narrador da história, Tyler é concebido
como um segundo ser, de personalidade, aparência e condutas bastante distintas das
do protagonista do filme, quando, na realidade, os dois são a mesma pessoa. Apenas
em seus minutos finais, o filme revela a qualidade patológica da compreensão
sustentada, remetendo-nos aos distúrbios apontados na psicanálise como
resultantes das confusões sobre os limites entre o Eu e o mundo externo.
A patologia nos apresenta um grande número de
estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática,
ou os limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio
corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos,
nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu; outros, em que se atribui ao
mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por
ele. Logo, também o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as
fronteiras do Eu não são permanentes. (FREUD, 2011, p. 9)
O fato é que o
protagonista, apesar de ser capaz de realizar todos os feitos citados
anteriormente, não concebia a ideia de que ele próprio estava agindo de forma
tão diferente da habitual. Tyler era tido como um instrumento de sua ação.
O
homem civilizado.
O protagonista está inserido, desde o início da
trama, em um universo outrora apontado nos textos sociais de Freud como mundo civilizado,
no qual, como reconheceu o psicanalista, de comum acordo, todos tendem ao
sacrifício de seus instintos em benefício do grupo. A dinâmica civilizatória tem
como “passo cultural decisivo” (2001, p.40) a transferência do poder, antes nas
mãos dos indivíduos mais fortes, para a própria comunidade. O pacto
civilizatório é compartilhado entre os membros do grupo e tem-se amplamente
introjetado o conceito de justiça, o que garante que a ordem legal não seja violada
em benefício de um indivíduo, arbitrariamente. Em cima disso, constrói-se a
noção de direito. Em rigor, todos são iguais perante as leis e ninguém está livre
de punição caso desrespeite os combinados interiorizados através da cultura. É
claro que isso não se dá de forma completamente harmonizada. A não satisfação
dos instintos pode, se não for compensada economicamente, causar graves
distúrbios aos homens. Disso, iremos tratar mais adiante, em outro tópico. Ainda
sobre o conceito de civilização, vejamos uma de suas definições.
(...) a palavra “civilização” designa a inteira soma
das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos
antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a
natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si. (FREUD, 2011, p. 34)
Distinguindo-se dos animais e sofisticando
progressivamente a singularidade humana, é sensato imaginarmos que, dentre as
conseqüências desse processo, haja também um afastamento entre o homem e seus
próprios instintos. Em outras palavras, os homens civilizados, em busca de
segurança e longevidade, abrem mão de gozarem suas liberdades instintuais e
enfraquecem suas conexões com a natureza rudimentar. Com isso, a própria vida
humana ganha características mecanicistas na medida em que se afasta da espontaneidade
e rebusca cada vez mais seu conjunto de necessidades, assim como os critérios pelos
quais irá guiar-se na decisão de satisfazer ou não a cada uma delas.
Homogeneizados, debilitados em suas forças animais e
atraídos por necessidades sofisticadas, os homens constituem a chamada
sociedade de consumo. Em relação a isso, gostaríamos de destacar uma cena na
qual o protagonista da trama de Clube da Luta é convidado, no contexto de uma
experiência meditativa, a adentrar sua própria caverna em busca de seu poder
animal. Na tomada seguinte, em meio a um gélido cenário, ele encontra-se com um
pinguim. Nossa hipótese é de que essa figura ajuda a nos remeter ao imaginário
do mundo moderno através da ativação da memória do pinguim de geladeira, uma
mercadoria cujo valor é fantasioso. [1]
Ou seja, atende a desejos inéditos, inúteis, se olhados pela ótica das
necessidades primárias.
Outra analogia pode feita entre a ave e o homem
civilizado. A aparência do pinguim assemelha-se ao estereótipo do engravatado.
Sempre em bandos, ambos aparentemente uniformizados, dão-nos a sensação de que
caminham de maneira mecânica, automática, e que não gozam da liberdade da
escolha. É irônico que a força animal do protagonista esteja encerrada numa
figura desengonçada e frágil como aquela. É significativo e faz menção a esse
desligamento, entre nós e nossos instintos selvagens, cultivado ao longo do
processo humanizatório.
Talvez por isso, por tamanho desconforto em ser o
que se é, o personagem principal da trama acaba buscando medidas paliativas
para suas angústias e insônias. Ao ser ignorado em seu pedido de ajuda médica,
ele acaba participando de grupos de assistência a pessoas com câncer. Dentro
deles, imerso na atmosfera de sofrimento extravasado, ele se permite chorar e,
chorando, consegue dormir novamente.
A fragilidade do corpo físico é uma das fontes apontadas
por Freud para a existência da infelicidade humana[2],
“corpo que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor
e o medo, como sinais de advertência.” (FREUD, 2011,p.20) Chloe, participante
de um dos grupos que o personagem passa a frequentar, sofrendo por um câncer
bastante adiantado, faz um relato no
qual se expõe em busca de uma última experiência sexual, transcendendo alguns limites
introjetados pela cultura. As palavras ditas causam constrangimento ao grupo.
Não há espaço no mundo da civilização para que as pessoas manifestem-se desta forma
e Chloe, por estar numa situação limite, não parece mais se importar em
adequar-se a ele. Talvez seja essa a busca do protagonista. Encontrar uma
situação limite que o permita sentir-se vivo como um bárbaro, um selvagem,
alguém que não participa deste acordo mal sucedido e que não hospeda em si a
mesma insatisfação dos civilizados.
Tyler Durden é uma espécie de guia espiritual que,
através da experimentação do caos, conduz o protagonista ao fundo do poço.
Tyler diz que ainda nem cheguei perto do fundo. E se
não levar alguns tombos pelo caminho, não serei salvo. Aconteceu isso com Jesus
na tal de crucificação. Não basta abrir mão de dinheiro, bens materiais e
conhecimentos. Não é um mero retiro de fim de semana. Eu devia esquecer a
autoperfeição e perseguir a desgraça. Não podia mais ficar brincando de
salvação.
Isso não é um seminário.
- Se você não tiver coragem de bater no fundo, não
vai conseguir – diz Tyler.
Só se pode ressuscitar depois do desastre. (...)
Eu pergunto: estou ao menos próximo do fundo?
- Onde você está agora, não consegue nem imaginar onde é o fundo. (PALAHNIUCK,
1996, p. 34)
No decorrer do estreitamento de laços entre os dois,
constróem-se algumas situações nas quais Tyler inspira, incentiva e oferece
meios para que o protagonista se aproxime desse objetivo destrutivo.
O
Clube da Luta.
É nesse contexto de busca transcendente que o Clube
da Luta é criado. Uma luta por vez, dois homens, sem camisa, sem sapatos,
encontram-se no meio da roda e batem-se o mais forte que puderem. Não se trata
de uma competição. Não há quem perca ou ganhe a luta. O limite a ser
ultrapassado é o limite da dor, do medo, da apatia, da desconexão entre o homem
e sua própria força animal. As lutas terminam quando um dos participantes pede,
sinaliza ou fraqueja e elas duram o tempo que for necessário.
O protagonismo da violência nesse processo de auto
conhecimento[3] sugere algo. Se no processo
de civilização o homem se viu obrigado a reprimir seus impulsos em prol da
coletividade, isso, como já mencionamos outrora, seria causa primeira da
hostilidade gerada entre os indivíduos. Adversos, porém, por vezes unidos compulsoriamente,
os homens convivem abstendo-se da satisfação de alguns desejos e impulsos
agressivos. O impulso derivado da pulsão de morte, tanatus, obstina a destruição, tende ao nada. Pouco
aceito e reprimido pelo acordo social, acaba investido contra o próprio eu.
Alimenta-se assim um ciclo, pois, o homem, ao realizar esse processo,
internaliza, ele mesmo, as balizas da cultura que, por sua vez, reprime a
manifestação da violência. Freud denomina essa instância psíquica reguladora da
ação humana como Super-eu.
A agressividade
é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de volta para o lugar
de onde veio, ou seja, é dirigida contra o próprio Eu. Lá é acolhida por uma
parte do Eu que se contrapõe ao resto como um Super-eu, e que, como
“consciência”, dispõe-se a exercer conta o Eu a mesma severa agressividade que
o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos. À tensão entre o rigoroso
Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta
como necessidade de punição. A
civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao
enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu
interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada. (FREUD, 2011, p.
69, grifo nosso)
A luta do homem comum é o embate entre a natureza nos instintos
e a ordem castradora instaurada. No Clube da Luta, quando tiram suas camisas e
seus sapatos, simbolicamente despem-se de seus papéis sociais. Encorajados pelo
grupo, gritam, batem, apanham, sujam-se, marcam seus corpos com hematomas e
cicatrizes. Nos dias seguintes, ao retornarem às suas vidas, seus empregos,
olham uns aos outros com a satisfação de dividirem o mesmo segredo.
O
Sabão.
“Não limpe. Sabão e o sacrifício humano andam de
mãos dadas – diz Tyler.” (PALAHNIUCK, 1996, p. 34)
Gostaríamos ainda de abordar outra significante
relação simbólica presente no filme. Uma das coisas que Tyler ensina ao
protagonista é a fabricação caseira de sabão. Como vimos no livro de Freud, o
sabão pode ser considerado como medida direta do grau de civilização social. Destacando
a limpeza como uma das exigências culturais[4],
ele aponta:
Não achamos que tivesse alto nível de civilização
uma cidade inglesa do tempo de Shakespeare, quando lemos que diante da casa de
seu pai, em Stratfors, havia um monte de esterco; nós nos indignamos e tachamos
de “bárbaro”, que é contrário de civilizado, quando vemos sujos de papéis os
caminhos do Bosque de Viena. A sujeira de qualquer tipo nos parece
inconciliável com a civilização; estendemos para o corpo humano a exigência de
limpeza e ouvimos espantados que a pessoa do Roi Soleil exalava um cheiro péssimo, e balançamos a cabeça quando,
na Isola Bella, mostram-nos a pequenina bacia que Napoleão usava na toalete
matinal. (FREUD, 2011, p. 37)
Acreditamos que a presença do sabão na trama do
filme seja intencionalmente crítica. Tyler, questionador declarado da ordem
vigente, utiliza-se de um símbolo civilizatório para transgredir sua própria
lógica. Seguindo a receita da mistura de gordura e soda cáustica, os dois
amigos passam a saquear os lixos das clínicas de lipoaspiração. Ironicamente, o
sabão fabricado era revendido nas mais luxuosas lojas de cosméticos. Fechando
um ciclo bizarro, mulheres ricas compram de volta suas próprias gorduras. A
incoerência do sistema fica explicitada assim como a ilusão presente nos selos
de qualidade dos produtos, nos contratos de seguradoras de automóveis, nas
cartilhas anti-pânico dos aviões, no mundo.
Considerações
finais
Todos
os intercâmbios possíveis entre as duas obras analisadas confirmam a
continuidade da presença dos questionamentos humanos relativos ao processo de
civilização. Tanto Freud quanto Fincher (diretor do filme) e Palahniuk (autor do livro) nos
permitem exercitar a reflexão sobre o tema. Seja pelos escritos da psicanálise,
seja por meio de uma representação poética, permitimo-nos elaborar,
problematizar, questionar a ordem civilizatória na qual nascemos e vivemos.
Os acontecimentos citados na introdução deste estudo
refletem o impacto desse tema e as variadas formas de manifestação que ele pode
assumir. Chama-nos atenção o fato de que, nos dois exemplos mencionados, o do
atirador e o do colégio, os indivíduos envolvidos pertencem a um grupo social
de médio a alto poder aquisitivo. Ao que tudo indica, compartilham das regras
da sociedade de consumo, possuem os acordos culturais devidamente introjetados
e, num rompante de questionamento das circunstâncias sociais, cada qual a sua
maneira, vêem-se em busca de libertação destas amarras.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. O Mal Estar na Civilização. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2011
MARX, K. O capital: crítica da economia política:
Livro primeiro: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1975.v.1.
PALAHNIUK, C Clube da Luta. São Paulo: Editora Leya Brasil. 1996
Filme
Fight Club(Clube Da
Luta), Direção: David Fincher, roteiro: Jim Uhls, Distribuição:
20th Century Fox. EUA,
2000.
[1] “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que,
por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza,
a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”. (MARX, 1975, p. 41)
[2] As
outras duas: a ação de forças inexoráveis do mundo externo; relações com outros seres humanos. (FREUD, 2011, p.20)
[3]
Referimo-nos, neste caso, ao resgate dos impulsos reprimidos e rechaçados
culturalmente e que, presentes no homem, necessitam ser re-conhecidos. O auto
conhecimento, dialeticamente, faz-se na negação de si mesmo. Na destruição dos
contornos, dos limites identitários, das ideias de eu civilizado.
[4]
Freud estabelece uma tríade de exigências essenciais à civilização: Beleza,
Limpeza e Ordem.